MORTES  QUE  DESVIARAM  A  HISTÓRIA

MIGUEL REALE

                    Em artigo anterior (OESP 16-2-02) dei dois exemplos de fatos inesperados que alteraram o rumo de nossa história, um deles relativo à contingência em que nos vimos de recorrer à força para impedirmos a cubanização do Brasil pelo presidente João Goulart. Infelizmente, ao contrário do esperado, não obstante os esforços de líderes como Juscelino Kubtschek e Carlos Lacerda, prevaleceu no meio militar a chamada “linha dura” que entendeu necessário um Ato Institucional, baixado em 5 de abril de 1964, suspendendo as garantias institucionais até 31 de janeiro de 1966 a pretexto de resistência às ideologias subversivas. Teve início, assim, um período ditatorial que iria durar, em razão de outros Atos Institucionais, mais de vinte anos, com sucessivos generais na presidência da República.

                   Não se pode, todavia, olvidar que durante esse tenebroso vintênio degladiaram-se duas tendências antagônicas, uma autoritária e outra democrática, saindo vitoriosa aquela em virtude de acontecimentos imprevistos de que seus adéptos souberam se aproveitar.

                   Embora seja pouco sabido, na fase em apreço, houve duas tentativas de pôr termo à ditadura dominante, mas a sorte não ajudou aos partidários da democracia, entre os quais sempre me inclui, colaborando intensamente tanto no plano político quando no jurídico.

                   A primeira tentativa ocorreu no governo do presidente Arthur da Costa e Silva, não obstante ter ele implantado,  a 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5, a mais violenta das medidas governamentais.  É que em maio de 1969, foi ele convencido pelo vice-presidente da República, Pedro Aleixo, a tornar aquele ato dispensável, graças à reforma da Constituição de 1967, que paradoxalmente havia sido declarada ainda em vigor. Fui então convidado a fazer parte de uma chamada “Comissão de Alto Nível”, destinada a essa revisão, sendo aprovado um texto constitucional que praticamente restabelecia a ordem democrática, podendo o AI-5 ser revogado por mero decreto, o que Costa e Silva nos disse ser seu propósito fazê-lo incontinenti.

            Acontece, porém, que ele foi acometido de um mal súbito, que o impossibilitava de governar, tendo mais uma vez a “linha dura” se aproveitado dessa circunstância para declarar suspenso o seu mandato, bem como o de Pedro Aleixo, o que foi imposto por uma Junta Militar trina, a qual expurgou de nossa proposta constitucional tudo que representasse conquista democrática. O que restou do plano de Pedro Aleixo foi a depois denominada Constituição de 1969, outorgada pelos donos do poder como Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969.

                   A segunda tentativa de retorno ao Estado de Direito deu-se durante o mandato do presidente Ernesto Geisel, com a participação decisiva do então senador Petrônio Portella, que gozava da maior confiança do chefe da Nação. Foi ele que, em fevereiro de 1978, me convidou a colaborar na elaboração de um texto constitucional capaz de propiciar a volta à ordem democrática no menor tempo possível.

                   Como lembro no segundo tomo de meu livro de Memória, nossos encontros se deram sempre em sua residência, pois as circunstâncias exigiam o maior sigilo. Nossa opção foi no sentido de uma reabertura democrática de tipo gradualista e progressivo, visando, de início, “o máximo de liberdade possível com o mínimo de segurança indispensável”, conforme dizer de Geisel.

                   Enquanto que outros preferiam exigir em vão o retorno imediato à democracia, estávamos convencidos da inviabilidade dessa postulação, preferindo ir realizando revisões parciais e sucessivas, das quais resultasse naturalmente a restituição das garantias constitucionais. As minhas sugestões, que figuram como Anexos do  citado livro de Memórias, obedeceram a essa tática, que era preferida também por Petrônio Portella, que nela se empenhou como Ministro de Justiça do presidente João Baptista Figueiredo. Mais uma vez, porém, a morte súbita de Petrônio Portella, já nomeado Ministro da Justiça pelo presidente João Baptista Figueiredo, veio interromper a plena execução de seu plano de restauração gradualista do regime democrático.

                   Foi assim que chegamos à eleição do sucessor do presidente Figueiredo, não por sufrágio universal com voto direto e secreto, mas sim por um Colégio Eleitoral composto dos membros do Congresso Nacional mais os delegados das Assembléias Legislativas dos Estados, seis para cada uma delas, sendo indicados pela bancada do respectivo partido majoritário, dentre os seus membros. Era uma forma engenhosa de perpetuação no poder dos que  estavam à testa dele. Como é sabido, restaram, a final, dois candidatos à eleição do Colégio Eleitoral, Tancredo Neves e Paulo Maluf, este apontado como representante do oficialismo dominante.

                   Havia, então, duas posições a tomar por um partidário da reimplantação do Estado de Direito: ou a exigência de “diretas já”, inviável naquela conjuntura; ou a compreensão do Colégio Eleitoral como um órgão supra-partidário, ao qual, portanto, não se estendia o princípio da “fidelidade partidária”, conforme ponto de vista por mim sustentado nos jornais da época.

                   Graças a essa tese, o Colégio Eleitoral como que se ajustou à dominante aspiração nacional, dando a vitória a Tancredo Neves, o qual vinculara sua candidatura a uma política de cunho liberal, com corajosa adequação das despesas aos recursos estatais disponíveis.

                   Pela terceira vez, no entanto, com o inesperado falecimento de Tancredo Neves, antes mesmo de tomar posse no cargo de presidente da República, iria malograr nossa esperança de um governo capaz de consolidar o retorno à democracia sem se perder em ilusórios planos populistas.

                   Privada a nação do equilíbrio de seu líder civil, o que depois aconteceu foi uma desastrada política econômica que culminou na moratória de nossa dívida externa, com as piores conseqüências de ordem financeira, ao mesmo tempo que o Chefe do Poder Executivo interferia nas deliberações da Assembléia Nacional Constituinte, levando-a a implantar no País um “sistema de poder” que não é nem parlamentarista nem presidencialista, mas uma mistura contraditória desses dois regimes, até agora não superada mediante imprescindível revisão constitucional.

02/03/02